MATÉRIA ESPECIAL: Federações partidárias: onde está a harmonia? Especialistas da PB comentam
“O que é uma ‘sociedade democrática’? É uma sociedade pacificada e harmoniosa, onde as divergências básicas foram superadas e onde se estabeleceu um consenso imposto a partir de uma interpretação única dos valores comuns? Ou é uma sociedade com uma esfera pública vibrante onde muitas visões conflitantes podem se expressar e onde há uma possibilidade de escolha entre projetos alternativos legítimos?”.
A reflexão é proposta pela cientista política belga Chantal Mouffe, no artigo “Democracia, cidadania e a questão do pluralismo”, no qual ela apresenta o dissenso não como uma anomalia a ser superada, mas uma condição inerente à vida democrática. Uma ideia similar defende a Constituição Federal de 1988, que ostenta o pluralismo político — e, consequentemente, partidário — como um de seus princípios fundamentais.
No entanto, o que era para ser um traço marcante da democracia, por representar a multiplicidade de ideias, transformou-se numa avalanche de agremiações, muitas delas com ideologias fracas. A falta de essência e de comprometimento com valores pré-definidos também resultou em parcerias relâmpago, interessadas tão somente no desempenho no pleito e no favorecimento de candidatos específicos. Tal comportamento — nocivo ao sistema eleitoral brasileiro — motivou legisladores a criar mecanismos que enxugassem a lista de partidos políticos.
Dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) apontam que o Brasil chegou a ter 35 partidos políticos em 2015. No mesmo ano, começaram os movimentos para reduzir o número de agremiações. A Lei no 13.165/2015, conhecida como minirreforma eleitoral, dificultou a criação de legendas, ao definir um prazo de dois anos para comprovação do apoio de eleitores não filiados. Desde então, só um partido foi criado, o Unidade Popular (UP), em 2019.
Em 2017, houve outro marco na legislação eleitoral: a Emenda Constitucional no 97, que estabeleceu o fim das coligações partidárias nas eleições proporcionais, a partir da instituição de regras sobre o acesso dos partidos aos recursos do fundo partidário e ao tempo de propaganda em rádio e televisão. Conhecido como cláusula de barreira, o regramento também definiu, em sistema progressivo, percentuais mínimos de votos válidos a serem atingidos por um partido para que ele eleja um representante na Câmara dos Deputados.
Nas Eleições 2018, quando o piso era de 1,5%, 14 partidos fracassaram na missão de alcançar a cláusula. Em 2022, quando o percentual mínimo subiu para 2%, 15 legendas esbarraram na legislação. Com isso, nove partidos recorreram a fusões e a incorporações e deixaram de existir em suas formas originais: PPL, PRP, PHS, PSL, DEM, Pros, PSC, Patriota e PTB.
Outro passo para acabar com a disseminação das legendas partidárias foi dado com a Lei no 14.208/2021, que estabeleceu um novo modelo de aliança entre agremiações: as federações. Esse tipo de articulação funciona como teste para uma possível fusão ou incorporação. Nas federações, as siglas preservam suas autonomias, mas devem funcionar como uma só agremiação por um período mínimo de quatro anos, de forma unificada, sem concorrer entre si. Essa forma de aglutinação, teoricamente, permite que partidos nanicos aumentem suas chances de alcançar a cláusula de barreira.
Mas as federações não atraíram apenas as siglas de menor expressividade parlamentar — legendas tradicionais também aderiram ao formato. Conforme o TSE, já existem três federações no país, com validade até maio de 2026: Brasil da Esperança, composta por PT, PCdoB e PV; PSDB-Cidadania; e Psol-Rede. Recentemente, União Brasil e Progressistas (PP) anunciaram sua federalização. Além disso, há expectativa de que a também recém- -noticiada fusão entre PSDB e Podemos evolua para uma federação com o Solidariedade. Apesar de essas novas uniões ainda não terem sido formalizadas legalmente, é possível que elas estimulem outras aglutinações de siglas.
Coerência?
O cientista político Flávio Lúcio analisa que as federações contribuem para a coerência das associações entre partidos.
“Os partidos ficam mais sob controle de pessoas, de indivíduos que têm o comando naquele momento. Mas [as federações] também permitem uma certa coerência, em termos de vínculo, entre as alianças locais e as alianças nacionais, porque, no Brasil, há uma verdadeira bagunça. [Existe uma articulação] com um partido de direita no estado ou no município e, nacionalmente, você tem uma coligação de esquerda. Quando Lula foi presidente pela primeira vez, todo o Centrão estava com ele, o mesmo Centrão que antes estava com o Fernando Henrique e que depois foi apoiar Temer, Bolsonaro e agora está com Lula de novo”, exemplifica.
O especialista aponta, ainda, que a política brasileira tornou-se “messiânica”, com lideranças como Lula e Bolsonaro substituindo a importância dos partidos. Ele questiona a capacidade desse cenário representar a diversidade, apontando a pouca representatividade de setores trabalhistas e camponeses no Congresso.
“Essa diversidade, se você considerar o tamanho das bancadas e o peso social, sempre foi muito pouco representativa. Nós temos uma política muito ‘messiânica’; você tem aquelas figuras, aquelas lideranças carismáticas, como Lula e Bolsonaro, e elas, em certo sentido, substituem os partidos e acabam aglutinando setores da sociedade em torno delas, ficando os partidos em segundo plano. A legislação está mudando só para favorecer os grupos dominantes desses partidos. São as lideranças que estão ali em cima, que têm força no Congresso, que têm força no empresariado; são essas [forças] que estão controlando os partidos, mas não há nada democrático nisso”, avalia.
Outro olhar Já o advogado Lincoln Mendes, especialista em Direito Eleitoral, vê as federações de forma negativa. Segundo ele, o formato favorece as rupturas locais, devido à imposição de decisões nacionais. “É uma decisão nacionalmente adotada que vem em cascata para os estados, que, às vezes, não têm essa comunhão de interesse”, critica.
Para o jurista, a cláusula de barreira, sim, foi um acerto, pois freou a criação indiscriminada de partidos motivada apenas por interesses eleitorais, em vez de ideológicos. “Você inviabiliza o funcionamento de legendas de aluguel, porque as pessoas que estavam nesse interesse vão se aglutinar em outras ideias. Você tem partidos, às vezes, que defendem a mesma bandeira, mas há um conflito pessoal. O interesse privado estava preponderando muito e eu vejo como um avanço a criação da cláusula de barreira”, opina. Lincoln Mendes defende que melhorias no sistema eleitoral dependem da educação da população.
“Em longo prazo, não tem outro caminho; só há como fortalecer esse sistema todo — para melhorar a representatividade, a disputa, deixar o jogo mais justo — se todo mundo tiver acesso à educação, acesso de qualidade. Eu não vejo outra perspectiva de melhora, a não ser pela educação”, declara.
Harmonia questionada
Lideranças partidárias também põem em dúvida o caráter unificador das federações. O presidente estadual do Progressistas, Enivaldo Ribeiro, até reconhece o fortalecimento nacional do partido, mas afirma que a consolidação de seus benefícios na Paraíba ainda é incerta. A principal indefinição, para o dirigente, reside no posicionamento do senador Efraim Filho (União Brasil).
“O partido ficou mais forte em nível nacional, mas aqui, na Paraíba, eu acho que não tem muita modificação. Eu não sei como é que fica a situação, por exemplo, do senador Efraim, porque ele não está sintonizado com o atual governo, como nós estamos. A gente tem uma posição privilegiada; em número de votos, nós temos mais do que o União. A gente tem [no nosso grupo político] dois deputados, dois senadores e um vice-governador”, analisa.
O cenário também não é dos mais harmoniosos na Federação Brasil da Esperança. O presidente estadual do PT, Jackson Macêdo, defende que a manutenção dos acordos seja debatida em 2025, com o objetivo de evitar conflitos nas Eleições Gerais. Na visão do dirigente, as direções nacionais dos partidos precisam unificar a tática eleitoral estadual.
“Tem que haver um debate verticalizado de tática eleitoral, porque, se a federação continuar, pode ter certeza que nós vamos ter, nas eleições de 2026, o PT apoiando determinado candidato a governador; o PCdoB apoiando outro; e o PV apoiando outro. Não teremos, necessariamente, nos 27 estados, uma unidade política”, prevê.
Entenda a diferença entre fusão, incorporação e federação:
- Na fusão, os órgãos de direção dos partidos políticos elaboram projetos comuns de estatuto e programa. Após o processo de deliberação conjunta, as legendas envolvidas são extintas para a criação de uma nova agremiação;
- Na incorporação, uma das legendas é extinta e incorporada à outra, que permanece com sua situação jurídica anterior à aliança;
- Na federação, as siglas funcionam como uma única agremiação e podem apoiar quaisquer candidatos, desde que permaneçam assim durante todo o mandato. Isso significa que elas devem vigorar por, pelo menos, quatro anos.
Texto de Paulo Correia para o Jornal A União deste domingo, 1/6
Imagem: Reprodução