Morre Jimmy Cliff, um dos maiores nomes da história do reggae, aos 81 anos
A nota, assinada por sua mulher, Latifa, informa que o artista “cruzou para o outro lado após uma convulsão seguida de pneumonia”. No texto, ela agradece a familiares, amigos, artistas, colegas de trabalho e fãs que acompanharam a trajetória do músico.
“Seu apoio foi sua força ao longo de toda a carreira. Ele apreciava profundamente cada fã”, escreveu. Latifa também mencionou o trabalho da equipe médica que cuidou do cantor durante o período crítico. O comunicado pede respeito à privacidade da família e afirma que mais informações serão divulgadas posteriormente. Jimmy Cliff ficou conhecido por clássicos como “Many Rivers to Cross” e “The Harder They Come”, e por ter sido fundamental no processo de globalização do reggae.
Nascido em Saint James, em 1944, Cliff viveu de perto os movimentos que fizeram a música jamaicana se transformar e ser reconhecida ao redor do mundo, a partir dos anos 1950. Ele começou a carreira no início da década de 1960, depois de se mudar para Kingston, a capital do país, aos 14 anos.
São dessa época músicas como “Miss Jamaica” e “Hurricane Hatty”, que captavam tanto o ska, que crescia desde a década de 1950, quanto o rocksteady, estilo que se estabeleceu naquela década de 1960.
À Folha, há quatro anos, Cliff disse que essa revolução na música acompanhou o processo de independência da Jamaica —até 1962 a ilha era colônia britânica. “A música na época era o ska, que expressava o espírito das pessoas, que estavam animadas. Tipo ‘olha, somos independentes’. Depois daquilo, a música ficou mais lenta, o rocksteady. Era assim ‘que independência é essa?’. Não somos independentes! Nada melhorou”.
Foi quando veio o reggae –Cliff, inclusive, esteve na primeira audição de Bob Marley em estúdio. “Começamos a buscar algo que nos tornasse independentes. Olhamos para a África. E aí veio o reggae, uma música entre o rocksteady e o ska. E junto veio o rastafarianismo, que é da cultura indígena jamaicana.”
Em 1964, Cliff foi o primeiro jamaicano a chamar a atenção da Island Records, emblemática gravadora britânica que se tornou a vitrine do reggae em Londres —e o resto do mundo. Ele se mudou para a capital inglesa aos 20 anos e lançou o primeiro álbum.
“Hard Road to Travel”, o primeiro álbum de Cliff, de 1967, foi feito para um público britânico consumidor de rock, já que reggae, ska e rocksteady eram desconhcidos por lá, e trouxe uma influência forte também do soul e do funk da Motown dos Estados Unidos. O jovem jamaicano foi a Londres cheio de ambições. “Ia ser maior que Beatles e Stones, mas não aconteceu”, ele disse a este repórter.
Segundo o cantor disse em diversas entrevistas, ele ficou sabendo que não havia discriminação contra os negros, que conviveriam em paz com os brancos. Ao chegar aqui, Cliff percebeu que apesar da beleza superficial, havia um segredo por trás dessa suposta harmonia.
“É um país lindo, tudo é bonito, mas existe um segredo por debaixo disso. Os pretos não lutavam contra as pessoas que os oprimiam. Eu entrava no banco e não via uma pessoa negra. Era opressor de tantas maneiras que eu não conseguia entender como eles não se revoltavam”, ele afirmou a este jornal.
Foi um momento de virada em sua carreira. A música “Wonderful World, Beautiful People” chegou ao sexto lugar das paradas britânicas em 1969 e se tornou um dos primeiros sucessos daquela então nova música jamaicana fora da Jamaica. Também alavancou o disco de mesmo nome, e o levou até o cinema.
Cliff imortalizou a subcultura de gangues de Kingston na pele de Ivanhoe “Rhyging” Martin, um dos mais famosos rudeboys do país, no filme “The Harder They Come” —ou “Balada Sangrenta”—, de 1972. O cantor viveu na pele o auge das disputas entre gangues, muitas delas armadas, na capital jamaicana, e já disse que quase permaneceu nessa vida.
Além de captar esse estilo de vida, o filme do diretor Perry Henzell ficou famoso pela trilha sonora, tida como uma das obras fundamentais para tornar a música jamaicana conhecida fora de seu país de origem. Cliff cantou boa parte das faixas, e se destacou especialmente pela otimista “You Can Get it if You Really Want”, além da faixa-título.
Dali em diante, ele seguiu como uma espécie de embaixador daquela cena musical vibrante da Jamaica —na década de 1970, já com Bob Marley e o reggae famosos mundo afora. Em 1975, quando seu filme saiu nos Estados Unidos, ele cantou na temporada de estreia do programa “Saturday Night Live”, e depois viajou à África, sob influência do escritor jamaicano radicado na Nigéria, Lindsay Barrett.
Cliff se converteu ao islã, e essas experiências acabaram dando o tom do disco “Give Thankx”, de 1978. É desse período a música “Bongo Man”, que marca o aprofundamento de uma busca espiritual em sua obra.
Criado num lar cristão, ele disse recentemente ao jornal jamaicano Jamaica Star que não encontrou a verdade na religião. “Eu segui e estudei o islã por um tempo, mas ainda não encontrei a verdade. Não satisfez minha alma. Então, fui para a Índia, cheguei a morar em um Ashram [um local para retiro espiritual] e estudei o hinduísmo. Por conta própria, pesquisei sobre o budismo. Eu os chamava de escolas [de conversão]”.
O show deles no estádio Fonte Nova parou Salvador. “A expectativa era de 15 mil pessoas, e deu mais que o dobro. Quebraram tudo. Foi notícia nacionalmente durante uma semana”, disse à Folha Geraldo Badá, fundador do afoxé Badauê, que trabalhou naquele evento, segundo ele, numa estrutura precária. À época, Nelson Motta disse, em especial feito pela TV Globo, que o show reuniu 60 mil pessoas.
Segundo o Diário de Pernambuco, o show de Cliff e Gil no Recife foi alvo de inquérito policial, por apologia de crime, quando cantaram uma versão de “Legalize It”, de Peter Tosh. Era o auge do reggae, e boa parte do público de 20 mil pessoas aproveitou o momento para acender um cigarro de maconha.
O jamaicano apareceu no Chacrinha e virou trilha de várias novelas —entre elas “Love I Need”, em “Água Viva”, de 1980, “Reggae Night” em “Voltei pra Você”, de 1983, “Hot Shot” em “Ti Ti Ti”, em 1985, “Now and Forever” em “Brega & Chique”, de 1987, e “Rebel In Me” em “Rainha da Sucata”, em 1990. Também tocou na segunda edição do Rock in Rio, em 1991.
O baiano recordou à Folha uma história de como Cliff valorizava a música de sua terra. Era 1991, no Festival de Jazz de Montreux, e o palco abrigava uma jam session de lendas como Ray Charles, Chaka Khan, George Benson, Al Jarreau e Paul Jackson Jr., entre outros.
Maior sucesso composto por Lazzo, em parceria com Gileno Felix, “Me Abraça e Me Beija” foi gravada por Margareth Menezes em parceria com Jimmy Cliff. Em 1984, o cantor gravou o clipe de “We All Are One” no Rio. Em 1991, registrou o álbum “Breakout”, lançado no ano seguinte, em Salvador. Hoje fora dos serviços de streaming, o disco teve participação do Ara Ketu na faixa “Samba Reggae”, que trata do rimo que está na base da axé music.
Ele também gravou com o Olodum antes de Michael Jackson e Paul Simon. O jamaicano participou de “Reggae Odoyá”, que o Olodum lançou em 1991 no álbum “Da Atlântida à Bahia… o Mar é o Caminho”. Depois, em 1999, cantou a versão do bloco afro de “No Woman No Cry”, sucesso de Bob Marley, no disco “A Música do Olodum – 20 Anos”.
Também morou na Bahia, onde criou sua filha brasileira, Nabiyah Be. Ela nasceu em 1992, fruto da relação do músico com a psicóloga e artista plástica Sônia Gomes, que o cantor conheceu em uma cerimônia de ayahuasca na praia, em Salvador. Hoje ela é atriz de sucesso, com carreira em Hollywood e em plataformas de streaming —como os papéis no filme “Pantera Negra” e na série “Daisy Jones and the Six”. Nabiyah Be também lançou neste ano seu primeiro disco, “O Que o Sol Quer”.
Ao longo da carreira, Cliff se distanciou do reggae, dub, ragga e dancehall que eram feitos na Jamaica. Desde cedo, ele morou fora do país, e partiu da música criada lá para fundi-la ao rock e ao pop que eram mais reconhecidos ao redor do planeta.
Bruce Springsteen regravou a música “Trapped”, de Cliff, e a tornou ainda mais conhecida depois que ela fez parte do álbum “We Are the World”, de 1985. Em 1993, ele voltou a fazer sucesso com uma versão de “I Can See Clearly Now”, de Johnny Nash, que integrou a trilha do filme “Jamaica Abaixo de Zero”.
Ao longo da carreira, Cliff trabalhou com diversas estrelas da música internacional, incluindo os Rolling Stones, Sting, Joe Strummer, Elvis Costello e, mais recentemente, Wyclef Jean, rapper e produtor que integrou o Fugees. Eles colaboraram no último disco do jamaicano, “Refugees”, de 2022.
O cantor tinha planos de escrever dois livros –uma autobiografia e outro volume sobre a história do reggae, dando luz a personagens menos conhecidos, como o influente engenheiro de som King Tubby.
Cliff é um dos poucos músicos, ao lado de Bob Marley e outros, a receber a Ordem de Mérito da Jamaica. Ele foi agraciado em 2003, pelo então primeiro-ministro do país, Andrew Holness, que chamou o cantor de “um verdadeiro gigante cultural cuja música levou o coração da nossa nação para o mundo… Jimmy Cliff contou nossa história com honestidade e alma. Sua música elevou as pessoas em tempos difíceis, inspirou gerações e ajudou a moldar o respeito global que a cultura jamaicana desfruta hoje.”
Cliff deixa a esposa, Latifa Chambers, e os filhos Aken, Lilty e Nabiah Be.
- Transcrito da Folha/UOL
- Foto: Divulgação


