A carioca Angela Maria Diniz Gonsalves nasceu em 5 de dezembro de 1949. Dificilmente alguém tomou conhecimento da notícia de sua morte sem lembrar imediatamente dos versos “que tudo o que ofereço/ é meu calor, meu endereço/ a vida do teu filho/ desde o fim até o começo”. É quase impossível ficar indiferente à letra de “Amor, Meu Grande Amor”, o maior hit de sua carreira.
A canção é de seu espetacular primeiro álbum, que reúne outras faixas contundentes, derramadas de paixão, como “Gota de Sangue”, “Tola Foi Você”, “Balada da Arrasada” e “Agito e Uso”. Durante toda a sua carreira, essas músicas eram aguardadas nos shows e sempre provocavam os momentos mais emocionantes de suas apresentações.
No palco, a performance de Angela Ro Ro sempre reproduziu um pouco um clima de cabaré. Ao piano, ela desfilava suas canções intercaladas com relatos à plateia. Contava casos, sem o menor pudor de revelar situações divertidas, ridículas e até humilhantes pelas quais passou, levada por uma vida conturbada.
Ro Ro carregou sempre esse apelido que ganhou na infância, certamente dado por alguém que, como todos, se impressionou com a voz rouca daquela menina que estudava piano clássico desde os cinco anos. Enquanto avançava nos estudos do teclado, começou a se interessar por cantoras que ganharam sua idolatria. Não por coincidência, eram mulheres de personalidade forte como Elis Regina, Billie Holiday, Maysa e Ella Fitzgerald.
Já colecionando episódios de rebeldia juvenil, ela foi para a Europa em 1971, passando por lá quatro anos realizando um sonho hippie mochileiro. Primeiro na Itália, onde conheceu o cineasta Glauber Rocha, mas a maior parte desse período foi passada na Inglaterra, onde pulava de um pequeno emprego a outro, o mais duradouro deles como faxineira em um hospital. E em Londres conseguiu as primeiras chances para cantar em pubs.
Glauber foi seu padrinho para a primeira experiência de gravação. Ela participou do disco “
Transa“, clássico de
Caetano Veloso, tocando gaita na faixa “Nostalgia (That’s What Rock and Roll Is All About)”.
De volta ao Rio, decidida a viver de música, ela se tornou figura conhecida na cena noturna da cidade, pela voz impressionante e por tretas que explodiram em lugares públicos, na maior parte das vezes em discussões com suas namoradas.
Ela acabou chamando a atenção da gravadora Polygram, hoje Universal, que a levou ao estúdio com os produtores Ricardo Cantaluppi e Paulo Lima. Angela era um diamante bruto difícil de lapidar, diziam. A maior tarefa da dupla foi selecionar 12 canções do repertório autoral da cantora. Em apenas duas faixas ela tem parcerias —no hit “Amor, Meu Grande Amor”, com Ana Terra, e em “A Mim e a Mais Ninguém”, em colaboração com Sérgio Bandeyra.
Num momento da MPB que favorecia a divulgação das cantoras, com Simone ocupando o posto de grande vendedora de discos e uma jovem Marina Lima começando a se insinuar para o sucesso, Angela Ro Ro caiu nas graças do público. Além da voz grave que conduzia suas músicas de amor e fossa, era sempre uma presença divertida dos programas de TV, falando o que dava na telha —para usar uma gíria da época.
Essa aceitação popular garantiu a ela a condição de produzir discos anuais para a gravadora. Vieram então “Só Nos Resta Viver”, “Escândalo”, “Simples Carinho”, “A Vida É Mesmo Assim” e “Eu Desatino”. Desses, que não mostram rupturas com o perfil de blues e rock do disco de estreia, “Simples Carinho” é o melhor, mas foi “Escândalo” que pegou carona na vida desgarrada da artista, algo já explícito no título do álbum.
As notícias de bebedeiras e brigas serviram para manter seu nome em evidência, mas uma suposta linha imaginária de tolerância aparenta ter sido rompida quando os jornais se fartaram de contar a agressão física a sua então namorada, Zizi Possi, outra cantora emergente no cenário da época.
Aí o público parece ter dado um basta nas traquinagens de Angela. Se musicalmente o entusiasmo dos fãs já tinha diminuído, esse episódio foi minando cada vez sua carreira. O público perdoa “bad boys”, mas não “bad girls”.
As gravações seguiram com apenas mais quatro álbuns, em longos intervalos afastada dos estúdios: “Prova de Amor”, “Acertei no Milênio“, “Compasso” e “Selvagem”. Embora em todos seja possível encontrar algumas faixas brilhantes, são trabalhos muito irregulares e praticamente ignorados pelo público. Sua carreira de shows foi sendo conduzida para espaços cada vez menores, que recebiam plateias envelhecidas, em busca de nostalgia pop.
Para quem teve chance de assistir a um de seus raros shows antes da pandemia, a impressão foi unânime. O talento musical e a comunicação com a plateia se mostravam intocáveis. Podendo pinçar as canções dentro do vasto repertório, cada apresentação era um desfile de técnica apurada no piano e letras fortes, desabafos confessionais de uma mulher que deu a cara para bater durante toda a carreira.
Distante da mulher sofrida que pediu dramaticamente ajuda financeira nas redes, é melhor ter na memória essa Angela Ro Ro estelar, essa artista singular na MPB.