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Juliette e Duda Beat poderiam ter sido o último elo a dizer “não participo disso”, diz Fióti sobre campanha da Bauducco

Mônica Bergamo

Folha de S. Paulo

Na entrada do Museu Afro Brasil, no parque Ibirapuera, em São Paulo, o cantor e empresário Evandro Fióti saca o celular para tirar uma foto. Na parede à sua frente está estampada uma frase do museólogo Emanoel Araújo, fundador da instituição, que morreu vítima de um infarto no ano passado: “Sou um homem indignado e me constrange toda violência que se vive, toda essa falta de educação, todo esse desespero dessa sociedade excluída. […] Minha indignação é constante”.

CEO da Laboratório Fantasma, produtora e gravadora fundada por ele e pelo seu irmão mais velho, o rapper Emicida, Fióti usa a palavra “indignação” várias vezes ao longo da entrevista de cerca de uma hora à coluna para explicar o que sentiu nas duas semanas anteriores.

O empresário foi um dos assuntos mais comentados nas redes sociais após acusar a empresa Bauducco de se apropriar do projeto “AmarElo”, lançado por Emicida em 2019, para uma campanha publicitária. Intitulada “Magia Amarela”, a ação era estrelada pelas cantoras Duda Beat e Juliettee acabou sendo cancelada após a repercussão do caso.

Nascidos na zona norte da capital paulista, Fióti e Emicida começaram fazendo tudo sozinhos, produzindo em casa, até se consolidarem entre os nomes mais relevantes do rap nacional.Fióti diz que recebeu de terceiros as primeiras divulgações da capa do single que seria interpretado por Juliette e Duda Beat. Internautas começaram a apontar semelhanças do trabalho com “AmarElo”, projeto que reúne música, show e documentário.O cenário fotográfico, que trazia vitrais de uma igreja ao fundo, era parecido, e a fonte da arte tmbém. “Até então, estava sendo difundido como uma música das artistas. Eu fiquei triste, chateado. Não sou amigo delas, mas existe uma relação profissional estabelecida e uma proximidade, inclusive até mais com a Duda do que com a Juliette.”

“Eu estava tomando café —e vocês vão rir dessa parte, porque tinha um produto da Bauducco em cima da mesa— quando eu vi a divulgação completa [da ação]. Pensei: ‘Não acredito que eles vão reproduzir a campanha na íntegra se baseando no conceito criativo que nós desenvolvemos’. E falei: ‘Quero que vocês se f.’. Vou gerir essa crise, e essa campanha não vai pra frente.”

“Os artistas brancos, muitas vezes, não precisam nem se preocupar com o que estão cantando. A gente tem inúmeros exemplos no mercado do entretenimento. A relevância criativa e o posicionamento não são levados em consideração. E a execução dessas músicas se dá de maneira massiva em todos os meios de comunicação.”

Ele diz que não tem o desejo de individualizar o caso, nem quer que as artistas sejam vítimas de ataque, mas afirma que é preciso “refletir sobre as práticas e atitudes comportamentais do pacto da branquitude”.

“Elas [Juliette e Duda Beat] não são as principais responsáveis, mas poderiam ter sido o último elo a falar: ‘Não participo disso’. Para mim é triste, é violento que ninguém dentro desse processo tenha tido a ética de olhar e falar: ‘Isso aqui pode ser muito errado, galera’.”

Fióti conta que a agência de publicidade responsável pelo projeto da Bauducco buscou a LAB Fantasma meses antes, em agosto. “O prazo [proposto] era completamente apertado. Se tratava de uma composição inédita, e o período em que esse lançamento iria ser feito não condizia com o tempo que a gente precisava para se dedicar criativamente. A gente tinha uma turnê enorme nos Estados Unidos [com shows de Emicida]. E [a Bauducco] não tinha recurso financeiro para o licenciamento da obra AmarElo.”

A música que dá nome ao projeto, interpretada pelo rapper Emicida com Pabllo Vittar e Majur, usa trechos de “Sujeito de Sorte”, de Belchior. “É uma obra do nosso catálogo que a gente tem dificuldade para usar. Mesmo a gente não pode fazer o que quiser [por causa dos direitos autorais]”, explica Fióti.

“A estrutura da campanha [com a agência de publicidade] foi feita em conjunto. O que poderia fazer, o que não podia, qual era o limite, mas eles não tinham recurso para fazer o que queriam.” As conversas com a empresa, afirma ele, pararam por aí. “E a forma como a continuidade [do projeto] se deu foi completamente sem profissionalismo, sem ética e de maneira racista”, defende o empresário.

Após a repercussão de todo o caso, a Bauducco cancelou a ação e tirou o videoclipe do ar. Em nota, a empresa afirmou que a música foi criada como parte da campanha que tinha o objetivo de celebrar o tom amarelo que estampa os produtos da marca.“A tipografia prevista para os materiais gráficos de divulgação seria a mesma já usada pela marca, tanto nas embalagens como em outras campanhas e posts das redes sociais. A campanha foi concebida como um projeto amplo e integrado, nascido das fortalezas históricas da marca”, dizia o comunicado.

As artistas também se pronunciaram e disseram que não participaram do processo criativo, apenas foram contratadas para interpretar a canção e estrelar um videoclipe.

“Dentro de toda a cadeia de desenvolvimento, o único elo que compunha a diversidade [da campanha] era a nossa organização. E nós fomos completamente excluídos do processo. Nossa propriedade intelectual foi esvaziada de sentido… Eu não quero dizer que falhas não acontecem, mas não é sobre isso. Isso não foi uma falha.”  

O projeto “AmarElo” envolveu, além do single e do disco do mesmo nome, um show de lançamento no Theatro Municipal de São Paulo e o documentário “AmarElo – É Tudo Pra Ontem”, da Netflix, que mescla cenas e bastidores da apresentação com a história da cultura negra brasileira. O trabalho rendeu à dupla um Grammy Latino.

O empresário pontua que o nome “AmarElo” foi inspirado em um poema de Paulo Leminski [Amar é um elo/ Entre o azul/ E o amarelo]. “Não tem como você ter hoje, no mundo que a gente vive, uma propriedade intelectual que seja 100% inédita. A inspiração no Leminski sempre foi dita pelo Emicida. Se a gente tivesse usado o trabalho na íntegra, feito a mesma coisa, a gente poderia incorrer no mesmo erro.”

Mas Fióti defende que, neste caso, a ideia criativa da campanha “só faz sentido se tiver os criadores originais”. “E eles [a agência de publicidade] tinham esse reconhecimento, da influência que isso tem no consumidor final”, segue.

Fióti afirma que quer usar o caso para atuar na melhoria da lei de proteção de propriedade intelectual no Brasil. E diz que, neste momento, busca priorizar o diálogo e negociar um acordo extrajudicial. “Isso mostra que eu sou um ser humano [do signo] de Peixes, com [ascendente em] Peixes e lua em Libra. Porque qualquer outra pessoa no meu lugar já teria matado todo mundo”, diz, entre risos. “Mas a gente vai até o fim.”

Fióti conta que foi um menino muito tímido e introspectivo desde a infância, mas com uma paixão muito grande por estudar. “Por mais que dentro da periferia a gente tivesse reconhecimento da cor da nossa pele, a gente não tinha acesso à educação de forma aprofundada para compreender o que é ser negro dentro da sociedade brasileira, que cresceu dentro do mito da democracia racial.”

“Você é animalizado diariamente ao defender aquilo em que acredita. E isso tem um abalo muito grande na psique do homem negro. Você vai ficando introspectivo, triste, sem se encontrar em si mesmo. Essa estrutura é completamente violenta e desumana.”

Hoje, aos 34 anos, ele diz que “começa a ter uma compreensão maior do que é ser uma liderança negra”. E discorre sobre a mensagem que quer passar ao sugerir o museu como local desta entrevista: “Acho que tem muito esse olhar de reconhecer, a partir desse episódio [da campanha], que a gente ainda vive numa sociedade onde o racismo é a grande espinha dorsal”.

“Mas hoje, com o crescimento de influências e de lideranças negras em diversas áreas, mas, sobretudo, no entretenimento, na cultura, houve uma evolução.”Ele também celebra a chegada do governo Lula ao poder. “Acho que a gente está vivendo o benefício de poder acessar um pouco de paz na nossa saúde mental. Mas isso não quer dizer que não tenha sequelas após tudo o que aconteceu nos últimos anos.”

“Por isso eu digo que o bolsonarismo venceu. A gente tem parte da sociedade dividida, a gente está vendo práticas violentas acontecendo dentro das escolas. O mundo está em um momento geopoliticamente mais grave do que há 20 anos, principalmente pela questão ambiental.”

“Acho que os desafios que a gente tem hoje, como Brasil, são muito mais complexos. Mas a gente está em um momento em que esse diálogo tem voltado a acontecer, acho que o governo tem construído pontes para que isso aconteça”, segue. Questionado sobre a relação entre a esquerda e as periferias do Brasil, Fióti prefere não enveredar muito no assunto, e cita Sueli Carneiro: “Entre a esquerda e a direita, continuo sendo negro.”

Transcrição da Folha

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