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APAGAMENTO – Monumentos e locais históricos “desaparecem” na cidade

Escondido entre latas de água utilizadas por flanelinhas, uma pequena escultura simboliza o local onde João Pessoa teve início. O marco zero segue invisível entre o vai e vem dos carros e pessoas que passam na Praça Dom Ulrico, ao lado da Catedral Basílica de Nossa Senhora das Neves, no Centro Histórico. Locais que guardam a memória da cidade estão se apagando com o avançar dos anos, são desconhecidos pela maioria da população e tampouco chamam a atenção dos turistas. (via Jornal A União*)

O espaço ao redor do marco zero é utilizado por moradores de rua para dormir. Apesar da discrição do monumento, o guardador de carros João Serafim conta que alguns turistas ainda visitam o local ao passar pelo Centro Histórico. Ele trabalha na área há 10 anos e revela que há algum tempo o número de pessoas em situação de rua aumentou na região.

Também não existe nenhuma placa de sinalização turística sobre o marco geodésico mais importante da cidade. O monumento sofreu com as ações do tempo e de vândalos. A pedra que caracteriza o marco zero, datada de 1922, está quebrada, pichada e quase não é possível ler as informações contidas no monumento.

Andando um pouco mais pelas ruas da cidade, na casa de número 176 da rua Santo Elias, no bairro do Tambiá, manequins ocupam parte da fachada da casa onde morou a professora e poetisa Anayde Beiriz. A placa que indicativa está apagada e ainda não foi substituída. O imóvel atualmente é sede de uma loja de roupas e foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba (IPHAEP) por sua importância histórica para o estado da Paraíba.

Mais um exemplo de espaços que marcaram a história da cidade, mas foram apagados da sua memória está a rua Irineu Ferreira Pinto, no Centro, que até o século 19 era chamada de rua da Palha. O local concentrava uma aglomeração de habitações de trabalhadores da construção civil que atuaram na edificação de prédios históricos da cidade.

Na rua Peregrino de Carvalho não há nada que lembre que na região um dia funcionou a Santa Casa de Misericórdia da Paraíba, entre a Duque de Caxias e o Ponto de Cem Reis. No local funcionava a instituição de assistência médica dedicada a cuidar de pessoas em situação de vulnerabilidade, como crianças órfãs e abandonadas, pessoas de extrema necessidade e até mesmo presos. A instituição funcionava por trás da igreja da Misericórdia.

“Foi um ponto importante na nossa cidade, sobretudo pela importância da Misericórdia, uma instituição hospitalar antiga e que tem todo um registro dessa sua presença, era hospitalar e caritativa”, pontuou o historiador Angelo Emílio.

Na mesma rua, conforme o historiador, também não restou qualquer indício sobre a igreja de Nossa Senhora do Rosário, da irmandade dos homens pretos. O historiador conta que o registro foi totalmente apagado da arquitetura e história da cidade. “Poucas pessoas sabem que aquele era um local de intensa presença da população afrodescendente na cidade, espaço de festas de origem afro-católica, dessa mestiçagem cultural. Tinha a devoção católica, mas misturada com os batuques, os cateretês, congadas e isso foi apagado da memória da cidade”, disse Emílio.

A Praça Rio Branco, que atualmente é cenário para os sábados de pagode, esconde histórias pouco conhecidas pelos pessoenses. Ali existiu a sede do governo da antiga Capitania da Paraíba e da cidade da Paraíba até o século 18, quando posteriormente foi transferido para o antigo convento dos jesuítas, atualmente o Palácio da Redenção. A mesma praça também abrigou a Câmara dos Vereadores, que governava a cidade ao longo dos séculos. O historiador Angelo Emílio ressaltou que aquele era um centro de gravidade política.

Fonte dos Milagres foi coberta por cimento

A Fonte dos Milagres abastecia a população com água potável desde 1692, mas atualmente ela está praticamente invisível. O descaso com a memória da cidade foi ainda mais impiedoso com a fonte, localizada na Ladeira do São Francisco, na Rua Augusto Simões, antigo Beco dos Milagres. Ela foi totalmente cimentada e em nada lembra o local que abasteceu a cidade por mais de 300 anos. O desenho das torneiras por onde corria a água ainda pode ser visto e poucas são as pessoas que conhecem sua história na região.

O motorista Durval Santos trabalha há 14 anos na rua e não chegou a ver a fonte funcionando. Ele conta, no entanto, que em dias de chuva a fonte passa a jorrar água por baixo da calçada. “É realmente lamentável que algo que já foi tão importante tenha ficado esquecido”, afirmou.

Às margens do rio Sanhauá, a história do Porto Capim e seus moradores passa despercebida por quem admira o pôr do sol no Hotel Globo. O historiador Angelo Emílio destaca a rica expressão da comunidade ribeirinha tradicional, com sua cultura e vivências.

“Quando olhar ali do Hotel Globo, tem que ver além da paisagem e do rio, enxergar que ali existe uma comunidade enraizada, com uma produção cultural. Seria muito importante que a cidade interagisse mais com aquelas pessoas, com aquele espaço de uma maneira dialógica. Seria interessante que o trade turístico e o poder público olhassem não de uma maneira enviezada e muitas vezes com preconceito e partisse para o diálogo”, pontuou o historiador.

INVESTIMENTO e conservação

Para o historiador Angelo Emílio o investimento na preservação da memória da cidade ainda é pequeno, assim como a fiscalização é deficitária. Além do risco do apagamento dos testemunhos arquitetônicos da cidade, ele cita ainda a falta de estrutura para conservação do patrimônio documental da cidade, assim como ocorre em grande parte do país. Ele afirma que os patrimônios arquivísticos são tratados com “extremo desmazelo”.

“Um ponto de partida é a visão. A visão que se tem do passado muitas vezes é estereotipada como se, por exemplo, a antiga cidade da Paraíba fosse toda de sinhozinhos e sinhazinhas andando à tarde nas ruas. É uma visão completamente estereotipada o passado. Nossa cidade é brasileira, em um período colonial imperial, uma cidade escravista e essa pujança expressa nas edificações tem sua contraface, que é a escravidão, a pobreza, que as vezes a gente quer apagar do passado e acaba por apagar o presente”, disse.

Marco zero – A Câmara Municipal da Capital aprovou em maio deste ano projeto de lei de indicação autorizando a Prefeitura a construir um monumento turístico indicativo do marco zero, próximo à Catedral. O autor da proposta, vereador Bosquinho, justifica que o objetivo é tornar o marco zero mais uma atração turística, a exemplo de outras capitais, como o vizinho estado de Pernambuco.

“O marco zero de João Pessoa hoje é uma singela pedra ao lado da Basílica. O marco inicial da construção da cidade teria sido ali, tendo em vista a necessidade dos primeiros habitantes não índios se protegerem do povo hostil. O monumento apontado está bem aquém de marcos zeros bem frequentados, como o do vizinho Recife, no estado de Pernambuco, que é palco de inúmeros espetáculos, inclusive o Carnaval, e ambiente de fomento turístico e econômico”, disse.

*Matéria assinada por Michelle Farias no Jornal A União

Foto: Ortilo Antônio, do Jornal A União

 

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