ESPECIAL – Afroempreendedorismo fortalece identidade negra na Paraíba
Um movimento que busca o fortalecimento da identidade, valorização de empreendimentos comandados por pessoas negras e que tem a preocupação com a geração de renda e circulação de dinheiro entre esse público. Essas são características do afroempreendedorismo. Historicamente, ele está enraizado na necessidade de sobrevivência e superação da falta de oportunidades. Embora não busque atender apenas ao público negro, já que não há restrição de perfil consumidor, o foco é no empoderamento afro, estimulando negócios e a construção de uma rede de vínculos. O conceito vem ganhando importância e permite refletir sobre os desafios únicos vivenciados por esses empreendedores, numa sociedade ainda marcada pelo racismo.
Em 2024, os empreendedores negros no Brasil alcançaram um recorde histórico na renda domiciliar per capita, registrando aumentos de rendimento maiores do que os registrados entre os brancos, em quase todas as faixas de renda. É o que aponta um estudo feito pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) a partir de dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) Contínua Anual. O levantamento reúne dados desde 2012 e mostra que, no quarto trimestre de 2024, o rendimento médio real dos negros donos de negócios é de R$ 2.477, maior valor da série histórica. Apesar desse crescimento, os afroempreendedores ganham 46,2% menos que os donos de negócio brancos (rendimento de R$ 4.607). Contudo, houve uma redução das desigualdades, já que, no último trimestre de 2012, o índice de rendimento era 52,7% menor em comparação aos dos brancos.
Entre os que decidem empreender, mesmo as pessoas negras representando 56,6% da população brasileira, ou seja a maioria, apenas 16% dela é dona de negócio, contra 18,6% da população branca. Nesse cenário, a maioria dos empreendedores negros é composta por homens (67,8%), com idade entre 30 e 49 anos (50,4%), e chefes de domicílio (54,8%). A escolaridade tem avançado: 52,3% possuem ensino médio completo ou mais, sendo que as mulheres negras se destacam por maior escolarização (65,4%) embora enfrentem barreiras adicionais no mercado, como a dupla jornada de trabalho. Negócios negros movimentam setores estratégicos como Serviços (41,7%) e Comércio (21,3%), fortalecendo economias locais e criando redes de apoio que sustentam famílias e comunidades.
Na Paraíba, os empreendedores negros são maioria (62,2%), segundo dados dos últimos três meses de 2024, e homens (69,2%). Quanto à escolaridade, a maioria possui até o ensino médio incompleto (57,7%), são predominantemente da faixa etária de 30 a 49 anos (52,1%), e chefes de família (54,9%). O setor de atuação predominante é o de serviços (34,1%) seguido de comércio (26,7%), agropecuária (21%), construção (11,9%) e indústria (6,3%). Apenas 16,4% possuem registro no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ), mas a maioria contribui para previdência social (82,1%). Já o redimento médio habitua total – média mensal de todos os rendimentos recebidos no último trimestre – é de R$ 1.738 entre os negros, contra R$ 2.908 dos brancos que são donos de negócios no Estado. Uma diferença de cerca de 40%.
Para a Analista Técnica do Sebrae, Heloísa Mirelli Diniz, também psicóloga, com MBA em Gestão Empreendedora e Inovação e Mestra em Desenvolvimento Regional, essa diferença reflete barreiras históricas no acesso a crédito, educação e redes de apoio. “Fortalecer o afroempreendedorismo é uma ação estratégica e socialmente necessária para corrigir desigualdades históricas e promover um desenvolvimento econômico inclusivo. Historicamente, a população negra foi marginalizada no mercado de trabalho e no sistema financeiro, enfrentando barreiras para acumular capital e formalizar seus negócios”, afirma. Ela acrescenta ainda que essas discrepâncias não são apenas números, mas representam o impacto de um ciclo de desigualdades que se perpetuam e afetam a vida dessas pessoas. “Precisamos romper esse ciclo, oferecendo soluções que reforcem negócios negros e políticas afirmativas que permitam aos empreendedores negros competir em condições mais justas. Entender que cada negócio negro é um espaço de afirmação cultural e transformação social, possibilita a redução das desigualdades e promove a inclusão”, reforça.
Iniciativas criam rede empreendedora
No período pós-pandemia da Covid-19, Polly Omi, psicóloga de formação, precisava gerar uma renda extra. Foi aí que ela começou a empreender no ramo alimentício, e a participar de feiras de economia solidária na região de João Pessoa. “Só que eu via que essas feiras não tinham um acolhimento adequado aos vendedores. Geralmente a gente chegava, montava nossa própria banca, não tinha nenhum suporte, nenhum acolhimento, nem preocupação se estávamos vendendo ou não. E a maioria das feiras também eram organizadas por pessoas brancas e os valores para participação eram absurdos”, relata ela, que na época também vivia o desafio de conciliar a maternidade com essas demais atividades. Nesse cenário, começa a nascer a ideia do Mercado Preto, um espaço exclusivo para afroempreendedores.
“O Mercado Preto surge da ideia de ter um espaço para venda de produtos e serviços de pessoas negras. E também queríamos que houvesse não só essa venda, mas a possibilidade de construirmos uma comunidade, da gente se ajudar, colaborar uns com os outros, e o acolhimento às mães empreendedoras”, destaca a idealizadora e integrante da comissão organizadora do projeto. A primeira edição aconteceu em 2022, e esses momentos também tinham um espaço de acolhimento para as crianças, com atividades pedagógicas e brincadeiras voltadas a uma educação afrocentrada. Desde então, foram mais de 10 edições realizadas, com cerca de 25 mercadores em cada uma, comercializando itens como acessórios, roupas, alimentos, objetos de decoração e outros. O espaço também agregou apresentações culturais, troca de experiências, oficinas e formações. “Temos a preocupação de que os mercadores – como são chamados os empreendedores que integram as feiras – estejam capacitados, para que todo mundo possa vender, e que todo mundo cresça junto. Há um sentimento de cuidado uns pelos outros, é uma comunidade que se forma”, ressalta Polly Omi.
Para a comercialização de produtos, também foi criada uma moeda própria: a kwanza. Inicialmente, ela era usada apenas pelos mercadores e convidados, para compra de mercadorias entre eles. Posteriormente, ela foi ampliada para toda transação comercial dentro do Mercado. Assim, o público pode trocar seu dinheiro em real, por Kwanza, e durante esse câmbio deixa uma taxa para o Mercado, o que ajuda a subsidiar os eventos, garantindo a sustentabilidade do projeto. “A gente entendeu que não dava para só gastar na produção dos eventos, e não ter nenhuma entrada. Então, a moeda é uma forma de termos uma arrecadação, e há também a lojinha onde vendemos copos, camisetas e chaveiros personalizados do Mercado Preto”, afirma. O próximo evento a ser realizado é o Festival Ojá Dudú, que acontece em 22 de novembro, celebrando três anos de existência do projeto. Para Polly Omi, na sociedade de uma forma geral, há uma cultura de exaltação do que é Branco, e iniciativas como o Mercado Negro buscam mudar isso e valorizar produtos e serviços de pessoas negras.
A CEO da Casa Empreendedora Hub, Fany Miranda, é outra mulher negra empreendedora. Vinda da periferia da capital paraibana, hoje ela comanda um negócio que já impactou mais de 5 mil famílias, entre as mentorias para outros empreendedores, produção de eventos culturais, palestras, formações e demais ações. Ela é também presidente da Associação de Mulheres Empreendedoras da Paraíba, que todos os anos realiza a Feira da Mulher Empreendedora, a maior de empreendedorismo feminino do Nordeste, que acontece dentro da programação da Feira Brasil Mostra Brasil. Fany é também artista visual, e destaca que tudo começou há 20 anos, com seu trabalho voltado ao setor cultural. “Hoje a Casa Empreendedora atua com todos os tipos de negócios. E essas ações já mudaram muitas vidas. A gente tem a história de Jaciara do Doce, que veio de Natal com uma proposta de emprego, quando chegou não havia nada disso. Ela ficou desamparada com sua família, começou a vender doces, e hoje é uma empreendedora de sucesso, comprou sua casa, carro e tem doces de criação autoral”, relata.
Em 2023, Fany recebeu o Prêmio Sebrae Mulher de Negócios, uma iniciativa que valoriza e incentiva o empreendedorismo feminino no Brasil, reconhecendo o trabalho de mulheres empreendedoras. Ela conta que na adolescência já esteve em situação de rua, e também faz um trabalho social voltado para esse público, além de presídios. A empreendedora brinca que tem alergia a CLT, e que só trabalhou com carteira assinada uma vez na vida, para juntar dinheiro para desenvolver o próprio negócio. “Na época, por volta de 2017, consegui juntar R$ 5 mil e abri uma esmalteria. Deu certo, mas eu usava o espaço mais para receber as pessoas que buscavam o meu trabalho de artista visual e de consultoria para outros artistas”, pontua. Com isso, e após um assalto ao seu espaço da esmalteria, ela saiu do ramo e focou seus esforços no trabalho de consultoria e mentoria empreendedora.
Hoje é reconhecida não só no Estado, mas também mundialmente, certificada pela World Creativity Organization como Liderança Criativa na Paraíba, e uma das cinco empreendedoras que geram impactos positivos, considerada “potência da favela” pela Revista Pequenas Empresas & Grandes Negócios em 2023, dentre outras conquistas. Mesmo nesse cenário, Fany conta que ainda enfrenta desafios ligados ao racismo: “O estereótipo é o desafio maior”, afirma ela, que conta que, de forma geral, o perfil e a aparência que as pessoas associam a uma pessoa empreendedora bem sucedida, não é o de uma mulher negra periférica. “Isso influencia na credibilidade, porque muita gente acha que a gente não tem capacidade, por conta dessa visão racista das coisas. Por isso, quando eu vou para um lugar palestrar, ou em eventos, eu faço questão de colocar colares, brincos, acessórios, usar tranças, reafirmar esse perfil e essa identidade”, ressalta.
Texto de Samantha Pimentel para o Jornal A União deste domingo, 9/11

