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Ordem social reconfigura ofícios na Paraíba e no Brasil

O mundo do trabalho vive em uma permanente mudança. Algumas profissões perdem força, outras se ressignificam ou até mesmo desaparecem. Todas estas transições ocorrem de modo a incorporar novos hábitos sociais, alterando a dinâmica de vida da população. No centro de João Pessoa, essa mudança é perceptível. Alguns trabalhadores informais, como sapateiros e amoladores de tesouras e facas, atravessaram esta dinâmica histórica e resistem ao tempo, permanecendo, por exemplo, na Praça Vidal de Negreiros. Já outros, procuraram novas formas de sustento.

Os trabalhadores da praça comentam que ali antes havia 24 engraxates e sapateiros mas, como as coisas mudaram, esse número caiu para apenas seis. Os que continuam lá trabalham há décadas na região. Como exemplo de permanência, está seu Antônio Pereira. Ele trabalha como sapateiro e engraxate há 56 anos no local. “Comecei aqui com 13 anos de idade. Muitos deixaram o ramo sem se aposentar, até porque conserto não está aparecendo mais”.

Seu Antônio fala que criou seus filhos na base deste trabalho informal, embora não veja nele o que ele chama de “futuro”. “Eu disse a eles QUE fossem estudar. Isso aqui só dá para mim. Hoje em dia, meus filhos estão todos de carteira assinada. Nessa profissão aqui, a gente tem que aprender a se virar”, comenta.

Para compreender o movimento na relação entre costumes sociais e profissões, é necessário, portanto, fazer um processo de análise das transformações sociais. O sociólogo Roberto Véras, professor doutor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB)e pesquisador do Núcleo de Trabalho, Desenvolvimento e Políticas Públicas (TDEPP) da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), analisou, durante sua carreira, parte destas mudanças e como elas operam também modificações nos hábitos da população.

“Surgem e desaparecem postos de trabalho e formas de ocupação, sempre que variam as condições de incorporação da força de trabalho em cada sociedade. Por exemplo, não existe mais a figura do caixeiro-viajante, que viajava pelo interior do país, muitas vezes no lombo de um animal, com um mostruário de produtos, tomando anotações dos clientes”, aponta Roberto, ao ser perguntado sobre como ocorre o desaparecimento de certas profissões. “No seu lugar, redes de distribuição no atacado e varejo, de representantes comerciais e de venda por internet atingem todos os quadrantes do país”, comenta.

 

Capitalismo 4.0

As modificações de caráter estrutural são as que mais modificam os postos de trabalho, de acordo com o pesquisador. Os ritmos das mudanças ganham velocidade e intensidade com as transições nas etapas do capitalismo, sobretudo com o implemento de novas tecnologias no mundo nas últimas décadas. Elas configuram o que é chamado de capitalismo 4.0, sustentado, principalmente, pelas tecnologias digitais, como discorre Eugênio Pereira, também sociólogo e pesquisador do Núcleo TDEPP.

Ele pontua que o conjunto de características históricas do Brasil advindas da herança colonial fez que com o país trilhasse o caminho das relações de trabalho que temos hoje. Eugênio cita que alguns pesquisadores famosos, como Celso Furtado e Florestan Fernandes abordam bem esse cenário, que é distinto do que encontramos em países como Alemanha, Inglaterra e França.

No entanto, o sociólogo explica que o capitalismo de forma geral já nasce como um sistema econômico que tem como característica essencial a contradição “esse sistema já nasce exatamente extinguindo uma série de ofícios que eram próprios ao velho ordenamento feudal. Então, ele produz esses desconfortos em relação ao trabalho e ao saber fazer das coisas de forma contínua”.

Por este motivo, as profissões vivem sob os impactos destas transformações. Segundo Roberto Véras, “Muitas vezes, o surgimento de um tipo de produto industrial, ao se modificar ou se tornar muito barato, tem grande impacto em antigas profissões. Exemplo é o do consertador de sapatos, que antes eram fabricados fundamentalmente de couro e cada vez mais os calçados passam a ser fabricados com material sintético” e, por isso, muitos produtos passam a ser descartáveis e levam à inviabilidade de profissões dedicadas aos consertos.

 

Incrementos tecnológicos reconfiguram hábitos

 Na Travessa Frutuoso Barbosa, mais conhecida como Rua dos Sapateiros, no Centro de João Pessoa, trabalha Janaildo Nascimento. Ele oferece uma gama de serviços: conserta alicateS e malas, amola facas e tesouras e ainda é sapateiro e engraxate. Ele conta que começou com 13 anos de idade consertando e costurando calçados, mas que tudo mudou nos últimos 20 anos. “Tem muita diferença nos últimos anos. Hoje em dia é mais parado. Além disso, nem todo mundo tem dinheiro pra consertar e, às vezes, é melhor jogar fora do que mandar ajeitar”, comenta.

Esta preferência por descartar um objeto não vem apenas dos hábitos que se modificaram com a velocidade exigida por novas tecnologias e a falta de interesse da população, mas também decorre da mudança nos processos de produção dos materiais, como aponta Roberto Véras. “Alguns, como bacias, copos, jarras etc., passaram a ser fabricados em larga escala a partir de outros materiais. Panelas passaram a ser fabricadas com lâminas tão finas de alumínio e por preços tão mais baixos, que não justificam mais o seu conserto”.

Sistemas de desenvolvimento de tecnologias que vão emergindo ao longo das décadas remodelam todos os padrões de troca e fluxos, inclusive do trabalho. Isto faz com que os indivíduos incorporem novas subjetividades e costumes que vão sendo adquiridos com o passar dos anos, inclusive de não ir através destes pequenos reparos.

Segundo o sociólogo Roberto Véras, “O futuro do trabalho dependerá das prioridades e valores predominantes em cada sociedade. Muitas vezes, sob o pretexto da modernização, pode prevalecer a precarização do trabalho”, como é algo que ainda prevalece nos setores de trabalho informal. As mudanças tecnológicas, especialmente as que se inscrevem na denominada revolução informacional, mudaram a oferta de serviços. Véras pontua que, atualmente, figura em alta, por exemplo, profissões como entregadores e motoristas de aplicativos.

Em alguns setores, no entanto, o mercado pode se encontrar desabastecido de profissionais que supram a necessidade do empresariado. Em entrevista ao Jornal A União em julho, o diretor do Sine-PB, Flávio Costa, falou sobre a falta de alguns profissionais qualificados no mercado. “Basicamente, não temos açougueiro em João Pessoa. Eu sou do interior e lá, normalmente, o pai ensina seu filho a desossar um boi. Ele aprende, mas não tem a qualificação necessária. Quando esse jovem se muda para João Pessoa, precisa lidar com aluguel, e o salário de açougueiro varia de R$ 2 mil a R$ 2,5 mil, o que, às vezes, não compensa a mudança”.

Esta é uma característica das modificações culturais que são múltiplas e variam também conforme os valores de cada região. O sociólogo Eugênio Pereira explica que este descompasso é comum também ao modelo de produção. “Isso sempre vai acontecer porque isso é uma característica inerente e inevitável. Está aí a importância da função do estado e no desenvolvimento de políticas públicas para o setor, com formação profissional e capacitação que possam corrigir essas distorções momentâneas”, comenta o sociólogo.

De pai para filho

Assim como a profissão de açougueiro citada pelo diretor do Sine-PB, outros ofícios, antigamente, eram passadas de uma geração para a outra. O faz tudo Janaildo ainda vive sob a égide desta configuração. “Tenho três filhos e um deles já está seguindo a profissão. Mas, é porque aqui a gente precisa. Eu necessito de ajuda pra chamar gente pra cá, porque o movimento caiu bastante, então eles me ajudam muito. Hoje em dia a gente precisa ir até o cliente para chamar ele aqui”, comenta. Alguns ofícios eram também comuns de serem passadas de pai para filho, a exemplo da costura.

No entanto, este não foi o caso da costureira Edna Richene, que tem um ateliê no BAIRRO DE Oitizeiro, na capital paraibana. Ela atua há mais de 20 anos na função e ainda revela ter muito ciúme das suas máquinas de costura. Edna acrescenta que o filho não tem a menor pretensão sequer de aprender a costurar. “Ele trabalha na área do Direito e hoje já é casado e tem a família dele”, comenta.

Mas, a relação geracional é também um ponto que depende do contexto e varia conforme classe social e modelo de trabalho. Mário Ladosky, professor da UFCG, sociólogo e pesquisador do Núcleo TDEPP explica que essa configuração ainda é comum no ramo de confecções no interior do Brasil, a exemplo do que ocorre em Caruaru, agreste pernambucano. “Um espaço que eu estudei muito foi o pólo de confecções de Pernambuco. Lá tem muita gente costurando dentro de casa, com filho, sobrinho, vizinha, fazendo costura para grandes marcas.”

Outras profissões que persistem em uma configuração que prioriza a reprodução geracional de um trabalho estão circunscritas em grupos de elite, como observa Roberto Véras. “São profissões que se associam a posição de status, a exemplo de médicos, profissionais da área jurídica, empresários, entre outros”.

Alguns ofícios, como o da costura, passaram por uma ressignificação. A costureira Edna conta que percebe essa mudança, principalmente, através do que os jovens buscam. “Eu percebo que, nesses 20 anos, mudou muita coisa na costura. Antigamente, as pessoas prezavam por uma coisa mais refinada e detalhada. Hoje, o básico é o melhor, principalmente para a juventude”. Ela conta que percebe que a procura aumentou nos últimos anos, principalmente para fazer ajustes de roupas. “As pessoas compram uma roupa COM um tamanho maior, porque acharam bonita, na certeza de que uma costureira vai fazer um trabalho profissional e ela vai ficar adequada ao seu corpo”

A releitura de determinadas profissões passa também pela mudança de hábitos. “Um jovem hoje pega uma calça jeans, corta uma barra, desfia, nem precisa costurar aquela barra, porque ele se sente bem com ela desfiada ou com um destroyer, uma roupa folgada, despojada, então assim, para eles isso é o básico. As pessoas de mais idade, elas são um pouco mais perfeccionistas”, comenta a costureira.

 

Pacto fordista

A releitura no trabalho é dada pela possibilidade que se abre com a sobrevivência das pessoas: “De 1945 a 1975 podemos apontar o pacto fordista, cuja característica fundamental era a produção em larga escala e significava a padronização das mercadorias e do consumo. Isso foi alterado e o mercado de trabalho funciona por especialização e por segmentação”. Esta é uma das justificativas que o sociólogo Eugênio enfatiza para que algumas profissões antigas tenham ganhado outros contornos, a exemplo da costura.

Sandra Fuentes, espanhola naturalizada brasileira, é uma professora da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) que sente prazer em poder manter certos objetos e roupas que herdou de sua avó e sua mãe. “Eu acho que ir de encontro ao consumismo exagerado é importante. Poder saber e ver que eu tenho objetos, que, mesmo eu envelhecendo, continuam lá é muito importante para mim. Me faz pensar que tem algo que eu cuido e herdei da minha família. Eu mandei consertar um sapato que foi da minha mãe e agora ele está até melhor do que o original”, conta ela, que mantém a tradição de conservar objetos que considera importantes.

 

 Texto de Marcella Alencar para o Jornal A União deste domingo, 8/9

Foto: Roberto Guedes, para o Jornal A União

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